Embora o tema já
tenha sido abordado aqui no Blog, nos últimos tempos houve um grande aumento na
busca de maiores informações e esclarecimentos técnicos sobre a melhor forma de
reaproveitamento do RAP, o material asfáltico granular oriundo da remoção de
pavimentos envelhecidos através da fresagem asfáltica. Ainda há dúvidas básicas
e conflitos de informações sobre as melhores práticas, motivo pelo qual o
assunto está sendo abordado novamente de forma mais detalhada.
O termo RAP vem do inglês “Reclaimed Asphalt Pavement”, pavimento
asfáltico reciclado. No Brasil é conhecido também como material asfáltico
reciclado ou simplesmente fresado. O seu reaproveitamento tem sido um dos assuntos
mais comentados na pavimentação brasileira nos últimos tempos em função do
aumento das políticas de ESG (especialmente pelas concessionárias de rodovias e
bancos de financiamento de obras), pelo apelo ambiental e de sustentabilidade,
além da questão de redução de custos que a reutilização de um material tão nobre
possibilita.
Os pavimentos asfálticos
estão diariamente envelhecendo, o processo de oxidação é natural e um dia será
necessária a remoção total da camada asfáltica envelhecida. Porém o Brasil
ainda está engatinhando no reuso do RAP. Nosso país tem poucas usinas de
asfalto adaptadas para o correto reaproveitamento, muitas vezes feitas de forma
inadequada tecnicamente. É estimado que menos de 2% das usinas de asfalto do
Brasil tenham alguma adaptação para uma correta adição do RAP na produção de um
novo concreto asfáltico. Montanhas deste material são frequentemente vistas às
margens de nossas rodovias, mesmo em trechos de concessionárias privadas. Em
obras públicas muitas vezes o RAP acaba sendo doado a prefeituras para
utilização como cascalho em vias não-pavimentadas, o que acaba sendo um
desperdício de um material que poderia ser muito melhor aproveitado do ponto de
vista técnico e financeiro.
Já os Estados Unidos é um
país onde mais de 95% das usinas de asfalto reaproveitam o RAP. O que podemos
aprender com o conhecimento mais que consolidado na América do Norte e como
trazer para a nossa realidade de equipamentos e obras no Brasil?
Material nobre para um reaproveitamento nobre
O RAP é chamado nos
Estados Unidos também de Black Gold
(Ouro Negro), em função de sua importância técnica e financeira. Isto pelo fato deste material ter em sua
composição o ligante asfáltico, que hoje representa o custo mais alto de todos
os insumos da pavimentação. Mesmo envelhecido há uma grande importância na
presença deste ligante asfáltico no RAP, o qual deve ser reutilizado de maneira
adequada.
Em uma publicação em 2019 de uma revista norte-americana especializada em equipamentos é ressaltado o termo Black Gold. A matéria cita os equipamentos utilizados no beneficiamento do RAP para transformar o material tanto em agregado quanto em ligante asfáltico na produção de novas misturas asfálticas.
Revista Heavy Equipment
dos Estados Unidos ressaltando o termo “black
gold” no processo de reaproveitamento do RAP.
Reutilizar
a quente ou a frio?
A NAPA (National Asphalt Pavement Association),
a associação norte-americana de pavimentação, realiza uma pesquisa anual com
mais de 1.000 empresas do ramo de pavimentação. Uma informação importante
apresentada no relatório é a respeito da forma como o RAP tem sido reutilizado
nos Estados. No gráfico abaixo consta que menos de 1% do RAP é reaproveitado a
frio (Cold Mix), enquanto mais de 94%
é reaproveitado a quente (HMA – Hot Mix
Asphalt) ou a morno (WMA – Warm Mix
Asphalt). Historicamente o uso do RAP em misturas à frio sempre foi baixo
nos Estados Unidos e vem diminuindo ano a ano desde 2009.
No mercado brasileiro tem
surgido inúmeros produtos que prometem verdadeiros milagres na reutilização do
RAP à frio, após uma simples mistura do tal produto com o material fresado em
temperatura ambiente. Muitos destes produtos não passam de solventes que
amolecem o ligante asfáltico presente no RAP, inutilizando esta parte que é a
mais nobre, assim o material acaba sendo tecnicamente reutilizado somente como
agregado.
As técnicas utilizadas no reaproveitamento a quente ou a morno permitem que o ligante asfáltico envelhecido presente no RAP seja reutilizado em maior proporção, podendo ocorrer economia na quantidade de ligante asfáltico novo que será adicionado na produção da nova mistura asfáltica.
Dados da
NAPA sobre o uso do RAP em diferentes aplicações, mostrando a grande
predominância do reaproveitamento em misturas à quente e mornas (HMA/WMA).
Cuidados
básicos na estocagem do RAP
É muito importante uma
correta estocagem do RAP, independente da forma como será feita a reutilização.
Assim como os agregados virgens utilizados na produção de um novo concreto
asfáltico à quente devem ser estocados em locais cobertos e com inclinação
(para permitir eventual escoamento de água), para o RAP é ainda mais importante
estes cuidados devido à grande capacidade de aglutinação e formação de grumos
deste material.
Infelizmente a grande maioria dos estoques de RAP pelo Brasil são improvisações em locais aleatórios sem qualquer cuidado, simplesmente jogados a céu aberto de forma improvisada. Isto torna mais difícil o posterior beneficiamento e correta reutilização, o que acaba favorecendo um uso precário do material.
Uma das maiores dúvidas em relação ao reuso do material fresado é em relação ao processo de beneficiamento do material. A granulometria inicial do RAP depende da forma como foi executada a fresagem, pois os grumos podem surgir no caso de desgaste das ferramentas de corte da fresadora. Os pavimentos brasileiros no geral são muito heterogêneos, com variações constantes de tipos de misturas asfálticas e espessuras, portanto o RAP terá também uma característica heterogênea.azenado, é possível através de um beneficiamento simples
alcançar um maior grau de homogeneidade no material. A primeira opção é um
simples peneiramento do RAP. Experiências no Brasil mostram que o material passante
na peneira de ¾ de polegada (19,05 mm) pode ser facilmente reutilizado ao ser
enquadrado na curva granulométrica dos agregados virgens. É possível também separar
o RAP em duas granulometrias, enquadrando respectivamente cada granulometria na
curva dos agregados virgens. A granulometria mais fina terá maior quantidade de
ligante asfáltico presente, portanto é preciso cuidado na análise de
laboratório para o projeto da mistura.
A etapa de destorroamento
do RAP é importante e recomendado. O processo de destorroar é diferente do
processo de britagem. O destorroamento é uma separação das partículas que estão
aglutinadas, porém mantendo a película de ligante asfáltico encobrindo os
agregados. Já a britagem convencional quando aplicada no processamento de RAP
acaba também rompendo os agregados, deixando uma face exposta sem recobrimento
de ligante asfáltico. O ideal é deixar o agregado com cobertura do ligante, para
que haja na etapa de dosagem da mistura um comportamento que permita reutilizar
esse ligante presente de forma com quem haja uma leve redução na quantidade de
ligante asfáltico novo.
Mesmo na literatura técnica internacional há poucas informações
técnicas a respeito dos equipamentos destorroadores de RAP, ficando a
informação restrita a poucos fabricantes do dispositivo. Basicamente são duas
espécies de conjuntos com discos que giram um contra o outro, promovendo a
separação das partículas sem rompimento dos agregados. Há também uma opção de
tambores com uma espécie de dentes, também um girando contra o outro.
Em relação a britadores, no Brasil algumas poucas empresas usam o moinho tipo martelo para beneficiamento do RAP. Este tipo de britador é equipado com um tambor dotado de uma espécie de barras soldadas no seu diâmetro. Ao girar promove o processo de britagem do material. Já no exterior é comum o uso do britador do tipo impacto, equipado com um rotor girando em alta velocidade com o material caindo por cima e se desfragmentando ao se chocar com o rotor em alta velocidade e escudos dentro da câmara. Porém esse tipo de britador gera muito material fino, o que pode atrapalhar o reaproveitamendo do RAP em percentuais mais baixos.
Adaptação das usinas de asfalto típicas do
Brasil
Este tema já foi abordado
com maior profundidade aqui no Blog
em uma publicação de setembro de 2021. No Brasil há uma grande predominância de
usinas de asfalto móveis com produção contínua, popularmente também chamadas de
usinas volumétricas (embora esse termo não esteja tecnicamente correto, mas o
termo se popularizou em algumas regiões). A maioria dessas usinas são equipadas
com misturador externo ao tambor de secagem, por onde o RAP é adicionado
diretamente após uma simples adaptação com silo de recebimento e correia de
transporte.
Ou seja, a adaptação mais simples é a instalação deste conjunto. Pode ser realizado também uma adaptação mais complexa e cara, com troca do tambor secador por outro que tenha um anel externo por onde o RAP é aquecido de forma indireta antes de entrar no misturador. Alguns fabricantes brasileiros fornecem a usina de asfalto já com este tambor dotado do anel externo. O RAP precisa deste cuidado especial porque não pode ser utilizado como agregado virgem no processo, uma vez que o ligante asfáltico presente quando exposto às altas temperaturas internas do tambor de secagem sofreria danos irreversíveis.
Melhor combinação técnica: RAP e Asfalto
Morno
O Brasil é um país onde há
uma grande quantidade de usinas de asfalto móveis com misturador externo, com o
RAP podendo ser adicionado em temperatura ambiente diretamente ao misturador.
Sendo assim a melhor opção técnica para otimizar o reaproveitamento do RAP é
realizar uma combinação com misturas asfálticas mornas, cujos benefícios
técnicos, financeiros e ambientais já foram apresentados aqui no Blog em publicação de novembro de 2022.
As misturas asfálticas
mornas estão em processo de crescimento em todo o mundo e também no Brasil
especialmente após a Petrobrás ter lançado ao mercado em dezembro de 2023 o CAP
Pro W 30/45, um ligante asfáltico com aditivo químico incorporado que permite a
redução da temperatura de usinagem em mais de 30°C.
E qual é o porquê da
combinação de RAP com mistura morna ser a mais vantajosa? Devido a questão da
temperatura final da mistura quando ocorre a incorporação do RAP entrando em
temperatura ambiente. Para que haja por exemplo a produção de um CBUQ a 165°C
utilizando 20% de RAP na mistura, é preciso superaquecer os agregados virgens
para compensar estes 20% de RAP que entram em temperatura ambiente. Questão de
equilíbrio térmico em relação à realidade de nossas usinas de asfalto, com a
maioria dos equipamentos não dispondo de sistema de leve aquecimento do RAP.
Ao usinar com temperaturas reduzidas há menor consumo de combustível e menos emissões de poluentes, possibilitando maior quantidade de RAP a ser adicionado. Há ganhos técnicos (menor envelhecimento de curto prazo), ganhos financeiros e ganhos ambientais.
Princípio básico do equilíbrio térmico exemplifica o porquê das misturas asfálticas mornas (faixa de temperatura entre 110°C e 150°C) é a melhor alternativa técnica para reaproveitamento do RAP, pois não há necessidade de superaquecimento excessivo dos agregados virgens.
Material de divulgação da Petrobrás sobre o ligante asfáltico aditivado com surfactante que permite a usinagem em temperaturas mornas e suas vantagens técnicas.
Qual o percentual de RAP que poderia ser
usado nas misturas?
Embora seja um país que de
maneira geral reutiliza pouco o RAP na produção de misturas à quente ou morno,
já há um número bastante razoável de experiências realizadas em diversas
regiões pelos fabricantes de equipamentos e também por fornecedores de produtos
químicos para pavimentação. Em misturas à quente o reaproveitamento fica
limitado entre 10% e 20%, dependendo do modelo da usina de asfalto e suas
características técnicas tais como volume do misturador e comprimento do tambor
de secagem dos agregados, o que permite um maior superaquecimento dos mesmos
para que haja maior percentual de RAP adicionado. Usinas com tambor secador equipado
com anel de secagem externo para o RAP permite um percentual maior, porém foram
pouquíssimas experiências práticas.
Em relação ao uso do RAP
em misturas mornas houve já experiências no Brasil com reaproveitamento de 30%
com adição direta do RAP ao misturador. Nestas condições houve uma redução de
aproximadamente 50% no consumo de combustível da usina ao reduzir em mais de
40°C a temperatura da mistura asfáltica. Houve também aumento de mais de 10% na
produção da usina de asfalto. Para o proprietário da usina há também ganhos
financeiros em função do menor desgaste com redução nos custos de manutenção.
Qual poderia ser um percentual médio a ser utilizado no Brasil? Vejamos novamente o exemplo dos Estados Unidos através do relatório anual da NAPA. Mesmo em um país onde 95% das usinas de asfalto estão adaptadas para reutilizar o RAP, o percentual médio de reutilização é de 25% de RAP na mistura asfáltica à quente ou morno. Embora haja nos Estados Unidos centenas de usinas de tambor duplo do tipo Double-Barrel que podem reutilizar até 50% de RAP em misturas à quente, o percentual médio é a metade deste valor. O uso em percentuais próximos de 20% é o mais ágil e fácil tanto do ponto de vista técnico (projeto da mistura asfáltica) quanto operacional (todo o processo de produção). No Brasil temos visto estudos de universidades considerando altos percentuais de RAP (50%) em laboratório com o uso de agentes rejuvenescedores, o que foge da realidade de equipamentos do país e também de outros países. O ideal seria aprofundar estudos com percentuais de utilização em torno de 20% a 30% com diferentes tipos de ligantes asfálticos, sem necessidade de agente rejuvenescedor.
Deve ser reutilizado um agente
rejuvenescedor no RAP?
O agente rejuvenescedor
tem a propriedade de renovar as propriedades originais do ligante asfáltico
envelhecido presente no RAP que está oxidado, restaurando a proporção original
deste material de asfaltenos para maltenos. Porém o seu uso nos Estados Unidos
é considerado apenas em percentuais altos, em misturas asfálticas com uso acima
de 30% de RAP. Em percentuais inferiores a parte envelhecida do ligante
presente no RAP é encoberta pela adição do ligante asfáltico novo, assim
ocorrendo um balanceamento de suas propriedades de modo a não prejudicar a nova
mistura. Importante ressaltar novamente que o uso do RAP em misturas à quente
ou mornas permite uma leve redução da quantidade de cimento asfáltico novo,
este o insumo mais caro de todos na pavimentação asfáltica.
Embora seja tema de estudo
em pesquisas de universidades brasileiras, o uso do agente rejuvenescedor nos
Estados Unidos é muito baixo, com apenas 5% de uso no total das misturas
asfálticas produzidas. Mesmo em um país com um número muito maior de usinas de
asfalto que permite um alto uso de RAP (acima de 30%) na produção de novas
misturas. Para a realidade brasileira, com poucas usinas adaptadas e com características
técnicas que permitem um uso moderado de RAP, podemos concluir que o uso do
agente rejuvenescedor não é necessário.
No relatório da NAPA é citado também o uso de um Softer Binder, que seria um ligante asfáltico mais “macio”, ou simplesmente de maior penetração, com uma média de uso de 22% no total das misturas asfálticas produzidas com RAP nos Estados Unidos. A Petrobrás fez um lançamento conjunto no final de 2023 também do ligante CAP Pro W 70/85, um cimento asfáltico de alta penetração. Este ligante é ideal para uso do RAP na produção de um novo concreto asfáltico, também com capacidade rejuvenescedora, em misturas com uso superior a 15% de RAP.
Dados da NAPA sobre o uso de algum agente rejuvenescedor nos Estados Unidos, com apenas 5% de relatos de uso em 2021, enquanto o uso de um ligante asfáltico de maior penetração (Softer Binder) foi de 22%.
Função dos órgãos públicos no fomento da reutilização do RAP
Ainda há processos a serem
feitos ou modificados para que seja fomentado o reuso de RAP no Brasil. Como
não há definições claras, montanhas de RAP se acumulam ao longo de rodovias
administradas por órgãos públicos federais ou estaduais, assim como em algumas
prefeituras. Boa parte destes materiais acabam sendo doados para cidades
próximas das rodovias utilizarem de forma precária, espalhando como cascalho em
vias não-pavimentadas. Há registro também de furtos de volumes de RAP em
algumas regiões.
Algumas sugestões já foram discutidas em eventos técnicos do setor de pavimentação tais como o RAPv (Reunião Anual de Pavimentação), ENACOR (Encontro Nacional de Conservação Rodoviária) e feiras como a Paving Expo Brasil. Já existem normas técnicas atualizadas, tais como a norma DNIT 033/2021 – ES “Concreto asfáltico reciclado em usina a quente”. Licitações deveriam ser montadas com o objetivo de reutilizar o RAP em percentuais até 20%, o que exige uma simples adaptação na usina de asfalto com instalação de silo de recebimento de RAP e correia transportadora de ligação ao compartimento de mistura com o CAP. Como a reutilização do RAP traz economia financeira, deve ser levado em consideração nas planilhas de custos uma leve redução nos valores financeiros que traga ganhos aos cofres públicos, mas de modo que a empresa ganhadora da licitação que tenha capacidade técnica seja capaz de produzir o concreto asfáltico com RAP também se beneficie financeiramente desta redução de custos.